quarta-feira, 28 de março de 2012

THE HUNGER GAMES (2012), dir. Gary Ross

ENTRE 1984 E UM FUTURO PRÓXIMO



De: Gary Ross
Argumento: Suzanne Collins, Gary Ross, Billy Ray
Elenco: Jennifer Lawrence, Josh Hutcherson, Liam Hemsworth, Elizabeth Banks






Se a nova moda parecem ser os remakes de filmes de culto, uma outra que não parecesse perder o seu firme punho no mercado é a adaptação de verdadeiras sagas juvenis com um toque do fantástico. Em 2001, Hollywood apercebeu-se deste buraco no mercado quando o primeiro filme da saga de JK Rowling tornou-se um dos filmes mais rentáveis de sempre. Harry Potter e a Pedra Filosofal de Chris Columbus rendeu pouco menos que 1 bilião de dólares nas bilheteiras (na altura em que o único filme que havia quebrado essa barreira era o Titanic) e a indústria começou a partir de então a investir pesadamente nestas aventuras. De um ponto de vista financeiro, eram jogadas promissoras, visto que havia diferentes oportunidades de uma saga ganhar novos espectadores, sendo esta uma fonte renovável de lucros. Oito filmes depois, a saga do feiticeiro rendeu ao estúdio da Warner Bros. perto de 8 biliões de dólares. E depois de descoberta a pólvora todos querem atirar no escuro.

Na última década o panorama cinematográfico foi, literalmente, invadido por outros exemplos deste tipo de cinema: uns com mais sucesso (Twilight, As Crónicas de Nárnia) que outros (A Bússola Dourada). E eis que chega a vez da trilogia de Suzanne Collins ser adaptada para o cinema numa altura em que o único franchise sobrevivente é o dos vampiros de Stephanie Meyer que caminha a passos largos para o seu final. E acho que só é justo ver o filme em função das outras sagas e analisar o filme por si só.

O primeiro capítulo da saga de Collins acontece num futuro indeterminado (que parece mais próximo do que longe), onde numa tentativa de «acalmar» os habitantes dos 12 distritos de Panem é organizado um evento anual onde dois jovens representantes de cada um dos distritos tem de lutar até à morte numa arena.

A nossa heroína - Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence) - pertence ao último distrito e oferece-se como Tributo quando a sua irmã de 12 anos é inicialmente escolhida. Ao seu lado é escolhido Peeta Mellark (Josh Hutcherson). Ambos extremamente jovens são então levados para o Capitólio onde são preparados para os jogos. Um factor decisivo do apelo desta narrativa é o lado mais filosófico e sociológico de como esta sociedade é apresentada. Os jogos são um evento mortífero, do mais primal imaginável. Contudo, é um programa de televisão - obrigatoriamente assistido por todos os habitantes. Como o Presidente Snow (Donald Sutherland) afirma a certo momento no filme, um pouco de esperança é como uma pequena candeia na escuridão e tem que se saber controlar o tamanho dela. E é nessa frágil linha entre o voyeurismo e o político que o filme caminha.

Obviamente, que neste tipo de filmes isso não seria suficiente para agradar ao seu público-alvo - isso seria demasiado adulto. É claro que não podiam faltar alguns elementos característicos como o triângulo amoroso, um ambiente completamente fantástico em alturas, personagens femininas particularmente impestuosas. Jennifer Lawrence parece uma escolha bem sucedida no papel principal de uma jovem fria que tem de lidar com o que de mais frio existe na raça humana e apesar de ter um ritmo inicial mais arrastado, o filme não passa como desinteressante ou monocórdico. Parecem ser passos necessários na construção de um universo novo, onde é importante criar todas as pontes possíveis com o nosso. É, de resto, pena que não tenha havido esse mesmo cuidado nos instantes finais do filme, sendo que depois de um crescendo fulminante que termina na coroação do vencedor o filme passa a ser um conjunto de cola e costura de sequências sem grande interesse para além de terminar o filme.

O universo construído por Gary Ross é de extremos. Se em partes quase que recorda o naturalismo d' O Senhor dos Anéis as sequências no Capitólio parecem um misto entre as cortes de Luís XVI de Sofia Coppola e o país das maravilhas de Tim Burton. É de notar que a câmara do realizador se mexe com muita mais naturalidade nas cortes do que na arena, onde as sequências de acção são filmadas preferencialmente no meio da acção o que torna a cena confusa e, por vezes, não deixa que o espectador participe da mesma.

Quando as duas horas e meia do filme terminam as bases para o segundo filme foram colocadas, contudo parece haver um cuidado especial em não deixar a acção em aberto como acontecia na trilogia de Peter Jackson. Mas o sucesso do filme nos Estados Unidos parece assegurar que não será a última vez que entramos na arena com Katniss e Peeta.

Comparado com outras sagas do género, The Hunger Games parece distanciar-se dos amores trágicos de Twilight e das demandas espirituais de Harry Potter e O Senhor dos Anéis, surgindo como um híbrido interessante do melhor desses mundos. A máquina por detrás deste novo franchise parece também querer promover este filme de um modo diferente que os seus antecessores e isso poderá jogar a seu favor agora que o mercado começa a dar sinais de alguma saturação.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Howl, por Ricardo Branco


         
Direção/Argumento: Rob Epstein e Jeffrey Friedman
Elenco: James Franco, Todd Rotondi e Jon Prescott

               Howl não é um filme para ser apreciado por toda a gente. Ainda que a linguagem de certa forma o permita: nunca irá ser sentido da mesma forma por alguém que seja um outsider total face a aquela história. Howl é um filme sobre a literariedade na homossexualidade.
            Mais do que um filme sobre a vida de Allen Ginsberg e de certa forma da vida dos seus colegas da beat generation – Howl (como o nome indica) debruça-se sobre a análise e reflexão do poema: o que poderá ser obsceno ou não, o que tem valor literário ou não e tudo vai acontecendo com o julgamento de guarnição.
            As animações que acompanham o poema são cruas e de tons de alucinação – mas de uma beleza inquestionável e uma importância séria na interpretação do poema: as formas são abstratas muitas vezes, mas também o são as palavras deste poema à primeira leitura “como uma fotografia lentamente revelada”; a certa altura já não sabemos se as imagens nos ajudam com o texto ou o texto nos ajuda com a imagem – o importante é que somos levados e consumidos pela ilustração.
            A inserção de imagens reais leva o filme para um outro nível – não tão épico, mas assim no tom de Milk (por Gus van Sant) com dezenas de hipsters e white negros a dançarem ao som de Hot Jazz e a darem-se aos prazeres do mundo. Há uma confirmação daquilo que especulamos, há uma confirmação daquilo que imaginamos quando ouvimos as entrevistas que Allen dá (aqui interpretadas por Franco).


Não é novidade que James Franco desempenharia bem o papel de Allen Ginsberg, mas é novidade que ele o viveria desta forma tão pulsante – atento nos pormenores do sotaque e da acentuação da leitura e nos gestos levando-nos a crer um Ginsberg (que de alguns ângulos chegam a ser bem parecidos).
            Nota-se perfeitamente que este filme é dirigido e criado por alguém que está habituado a documentar apenas e isso é bastante positivo aqui: são uns quantos pontos oferecidos à veracidade e realidade do filme e leva-nos a acreditar que tudo aconteceu exactamente daquela forma (e quem sou eu para o questionar?).
            O poema está lá (incluindo a sua “sagrada” nota de rodapé), a polémica e o poeta também: não faltou nada – até Kerouac e Cassidy existem neste filme – talvez a única coisa que faltou foi mais: ficamos com a sensação de que nos soube a pouco.
            Em Howl celebra-se tanto a alegria da homossexualidade, como a literariedade de se escrever caralho.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

SHAME (2011), dir. Steve McQueen

A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER



De: Steve McQueen
Argumento: Abi Morgan, Steve McQueen
Elenco: Michael Fassbender, Carey Mulligan




Uma cama desfeita. Uma palma pressionada contra um vidro. O título do filme escrito com um líquido branco num tronco masculino. Mesmo antes de entrarmos em contacto directo com a mais recente obra de Steve McQueen, somos transportados para um universo sexual através de diferentes referências visuais.

Um gesto estranho num meio reservado, normalmente, ao principal chamariz na campanha publicitária de um filme - os actores. McQueen parece querer que o espectador fique perdido quanto ao «quem» do seu presente filme. Até ao primeiro plano de Shame, o espectador não sabe que género de corpo está associado aquele universo para onde já foi atirado.

Shame de Steve McQueen é sobre sexo. Sem qualquer sombra de dúvida. Mas não só. E, ao contrário de outros filmes que tratam a relação de alguma personagem com o acto sexual, a película de McQueen destaca-se por não fazer do acto em si um objecto secundário na narrativa do filme. Aqui, o sexo não resulta do enredo, mas sim o inverso. E o espectador é constantemente relembrado disto, quase pontualmente, durante o filme todo.

A problemática central do filme é a relação asfixiante de Brandon (Michael Fassbender) com o prazer sexual. O seu prazer sexual. O realizador muito rapidamente no filme cria a premissa de existir uma patologia na personagem principal. Isto para que o espectador perceba o mais rapidamente possível o modo como a «obsessão» sexual de Brandon corrói todos os campos da sua vida: das pausas masturbatórias no local de trabalho, aos inúmeros encontros sexuais com prostitutas, ao assombro constante da pornografia no seu quotidiano.

Tal como um alcoólico ou um toxicodependente faria, Brandon molda toda a sua rotina em torno do seu vício. Contudo, aliado a esta procura incessante do seu prazer físico, aparece um sentimento de vergonha - quase Católica - de agir sobre o mesmo. Um sentimento de culpa que o distancia de qualquer contacto emocional verdadeiro, ao ponto de ouvirmos Brandon dizer que não acredita em relações a dois.

A bolha de vidro que Brandon contruiu para si próprio ameaça ser estilhaçada quando a sua irmã - Sissy (Carey Mulligan) - se instala em sua casa por uns dias. Este acordo conduzirá Brandon a uma viagem descendente sob a sua própria condição. E a lente de McQueen está lá para captar todos os momentos - por mais constrangedores que sejam. A imagem acompanha Brandon e não há qualquer desejo de parte de McQueen de suavizar o que se está a passar.

Shame é esse tipo de filme. Pega nos colarinhos do espectador e obriga-o a ver. A experienciar. E quando este acha que não há nada mais capaz de o surpreender, o realizador conduz o filme para uma direcção completamente inesperada.

Michael Fassbender entrega uma interpretação notável ao conseguir caminhar a esguia linha que separa o humano do abjecto. A sua interpretação está repleta de variações incríveis que preenchem uma história difícil com rasgos intensos de humanidade que puxam os sentimentos de compaixão no espectador. E Carey Mulligan é nada menos que excepcional em mais uma escolha de registo que a separa do tipo de papel que lhe trouxe a fama. Como Sissy, Mulligan cria um perfeito desequilíbrio na existência de Brandon. A relação dos dois cimentada entre o familiar e a tensão sexual.

Se calhar - e tal como o próprio filme de McQueen - este raciocínio estende-se um pouco mais do que o necessário, mas, se calhar, existe a mesma necessidade de fechar algumas ideias. Talvez o filme seja como os cartazes o anunciam. Talvez ele seja aquele pequeno anel deixado na mesa pelo copo de vinho. Em Shame acabamos por conhecer como o copo foi lá parar, mas nunca chegamos a perceber porquê.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

The Girl With The Dragon Tatoo, por Sandra Moreira





Direção: David Fincher
Argumento: Steven Zaillian, Stieg Larsson
Elenco: Daniel Craig, Rooney Mara e Christopher Plummer









Desta vez não li o livro. A minha crítica não se baseia em ideações e construções mentais prévias acerca de cenários, pessoas ou diálogos. Desta vez não. Como se a história tivesse sido escrita só e apenas como guião deste filme, decidi experimentá-lo e render-me à realização de David Fincher, nunca antes uma decepção.

O filme cria-nos desde início uma atitude expectante. Em apenas 2 minutos e meio e através daquele que poderia ser um dos melhores vídeoclips da música de Trent Reznor, a sequência visuoauditiva inicial que se nos apresenta constrange-nos imediatamente com emoções que se vão consolidando em sentimentos ao longo do filme.

O argumento, esse poderia ser o do mais banal policial. Mas toda a conjuntura histórica e a carga emocional que o filme carrega, trazem para um plano tão importante como o da própria história, a essência de cada personagem, individualmente, como se em cada uma delas revivêssemos parte de nós mesmos.
A banda sonora é ela própria a tradução auditiva do que a imagem nos oferece. E tal sincronia sensorial vale metade das estrelas!
Lisbeth Salander (Rooney Mara) é a alma do filme. Tudo o resto é apenas o seu corpo, a sua materialização, o que os olhos comuns conseguem ver. Agarrou a recriação visual da sua personagem e brincou com ela, certamente com a mesma obsessão e prazer com que uma criança agarra um brinquedo novo. Através de um ser anti-social e pouco convencional, torna-se de tal forma envolvente que a empatia pela sua personagem se torna inevitável.

Não poupando as cenas de molestação e violação, de morte, perda e traição, o filme torna-se chocante com o som arrebatador do grito e do próprio silêncio.

Muito mais do que um filme sobre investigação criminal, este é um filme que nos assombra com o poder dos instintos, do amor, da paixão, da ira e da revolta. Todos eles, indissociáveis a certo momento na vida de cada um de nós…
Mais uma vez, David Fincher não decepcionou.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

WUTHERING HEIGHTS (2011) dir. Andrea Arnold

COMO MATAR DOIS COELHOS COM UMA CAJADADA SÓ



Wuthering Heights
De: Andrea Arnold
Argumento: Emily Brontë, Andrea Arnold, Olivia Hetreed
Elenco: Kaya Scodelario, James Howson, Oliver Milburn, Nichola Burley


Filmes de época costumam ser uma armadilha de regras e costumes perigosa. Para os criadores. Para os espectadores. Da roupa ao modo como as personagens se comportam e falam, o espectador tem todo um horizonte de expectativas que espera ser alcançado quando vê um filme de época. Este argumento, provavelmente, intensifica-se mais quando falamos de filmes que retratam a Época Vitoriana. Era das obras da Jane Austen e das irmãs Brontë. Todo o cânone cinematográfico baseado no universo literário destas autoras – demasiado extenso para enumerar – moldou todas as nossas referências e concepções de uma fatia de tempo da história inglesa. Até ao ponto que o formato se solidificou e, depois, saturou.

Por isso, a priori uma nova proposta fílmica do texto de Emily Brontë não parece trazer nada de excitante, ou inovador. A versão de Andrea Arnold parece argumentar o contrário. A interpretação de Arnold da história de Brontë é tudo menos uma obra formatada. Assente numa cinematografia tão majestosa como as próprias páginas da obra de Brontë, Andrea Arnold transfere o enredo de Wuthering Heights para um ambiente rural sufocante, que enclausura ainda mais as tensões da narrativa de Heathcliff (James Howson) e Catherine (Kaya Scodelario). Mas o filme de Andrea Arnold não é uma interpretação radical da obra de Emily Brontë.

Provavelmente, a maior liberdade que Arnold toma com o texto é transformar a personagem principal de Heathcliff num escravo negro, mas isto nunca surge como um elemento inverosímil durante o filme. O trabalho do jovem Howson não deixa que o espectador se distraia dos seus sentimentos. Existe sim uma enorme atenção ao detalhe descritivo da obra de Brontë traduzido em magnificas sequências – muitas delas desprovidas de qualquer diálogo.

Penso que este último aspecto do filme de Andrea Arnold é o que resgata o filme de cair na indiferença do espectador. Em vez, e de só, dar atenção ao trabalho dos actores ao transferir uma obra literária para o cinema, Arnold parece valorizar mais o papel do cinematógrafo neste processo de adaptação literária. E essa decisão parece ser um sucesso, pois, enquanto espectador, temos contacto com diferentes camadas interpretativas que só teríamos acesso na leitura do texto original. Existe, assim, uma espécie de poetização do plano cinematográfico, que vai de em certas sequências vermos a acção pelos olhos de Heathcliff ao vermos este desaparecer no nevoeiro.

A intenção de Andrea Arnold actualizar um clássico literário e cinematográfico espelha-se na linguagem das personagens, nos seus gestos e na sua perspectiva do texto e isso traduz-se numa obra sufocante que consegue fazer algo que achava impossível – injectar novo sangue num formato cinematográfico cansado.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

The Elephant Man & Vénus Noire

Vénus Noire, de Abdellatif Kechiche, foca a história real de uma africana explorada como atracção de circo no séc. XIX.
Saartjie (Yahima Torres), a “Vénus Noire” do filme, é uma mulher que possui nádegas e seios grandes e os órgãos genitais com características especiais. Foi para Londres com o seu patrão, com a finalidade de se tornar uma artista. Acaba por ser explorada devido às suas diferenças e, de certa maneira, torna-se mesmo “atracção de circo”.
Para além de entretenimento, Saartjie torna-se também alvo de estudo de cientistas, que suspeitam que ela faz parte de uma rara tribo, a tribo Hotentote.
Como já sabemos, a intenção de Kechiche nos seus filmes nunca é criar uma obra bela ou agradável. O seu objectivo é mostrar a realidade, mesmo que essa realidade venha de forma fria e cruel. Este filme é então um retrato da humanidade e dos seus tabus sociais, que ainda hoje observamos, tais como o abuso, o racismo, a identidade cultural, voyeurismo, escravatura, etc.
O filme leva-nos, então, a questionar a complexidade da arte, bem como os seus limites.
Verificamos que Saartjie mantém a mesma expressão ao longo do filme, uma aparente calma, quase que “anestesiada”. Este comportamento justifica-se com a quantidade excessiva de álcool que consome. Um dos possíveis motivos que a levam a ingerir esta quantidade de álcool excessiva é a vida dura que leva, uma tentativa de esquecimento da humilhação dos seus espectáculos, uma espécie de fuga à realidade.
Os espectáculos de Saartjie tomam lugar primeiramente em Londres, onde o caso dela é levado a tribunal devido a escravatura e abuso. O caso acabou por ser encerrado devido ao seu testemunho, negando qualquer tipo de abuso e alegando fazer tudo de livre vontade. Trata-se de uma cena ambígua, o espectador não consegue perceber se Saartjie é realmente uma mulher livre ou não (apesar de ser obvio que esta mulher se encontra sujeita a abusos e exploração do sujeito que se diz de sócio, como verificamos em várias cenas do filme).
Depois de Londres, após ter sido vendida, Saartjie é levada para Paris, onde presta actuações semelhantes, na minha opinião ainda mais humilhantes e obcenas. No filme, Réaux (Olivier Gourmet), trata Saartjie como uma escrava sexual e incentiva o público a participar, apesar do seu transtorno evidente. Ao aperceber-se da situação, o publico espectador afastava-se, reprovando, assim, o espectáculo. Isto conduz a uma cena de violência física e psicológica de Réaux para com Saartjie e mais tarde ao seu abandono por parte deste, por falta de cooperação e audiência nos espectáculos.
Saartjie vê-se então obrigada a prostituir-se juntamente com Jeanne (Elina Löwensohn), acabando por morrer mais tarde com uma doença inflamatória, possivelmente sífilis.

The Elephant Man, realizado por David Lynch, é também baseado numa história verídica do séc. XIX, a história de Joseph Merrick (John Merrick no filme).
John Merrick (John Hurt), um homem severamente deformado, explorado e mantido por um empresário de moral duvidosa, expõe-se diante de multidões embasbacadas, que pagam para se entreterem diante da sua monstruosidade.
Frederick Treves (Anthony Hopkins), um cirurgião, fica indignado com Merrick e leva-o para o Hospital de Londres, onde passa a viver.
Merrick revela-se inteligente e gentil, um curioso em relação à sociedade. O seu único desejo é fazer parte dela. Animado por ter visitantes, John sentiu-se parte desta sociedade por momentos. Isto não era real pois continuava a ser apenas mais uma “atracção” dos ricos.

Existem várias semelhanças nos dois filmes e, apesar de se passarem ambos no séc. XIX, são filmes muito actuais. Talvez não encarássemos o indivíduo com a brutalidade demonstrada nos filmes mas a verdade é que, ainda hoje, qualquer um dos personagens seria “olhado de lado” pela sociedade.
Podemos dizer que ambos são escravos e livres ao mesmo tempo. Merrick viu-se obrigado a exibir-se perante uma multidão para sobreviver e Saartjie queria subir na vida com o mundo do espectáculo. Apesar de iludidos, foram de vontade própria, caindo assim numa vida dura e enganosa, numa vida violenta de um escravo. Merrick é vítima de uma violência maioritariamente física enquanto que, com Saartjie, é usada uma violência mais psicológica, apesar de vermos também episódios de violência física ao longo do filme.

Tratados como animais enjaulados:
Merrick, inicialmente cativo numa espécie de cave escura, obrigado a exibir-se perante uma multidão para sobreviver. Mais tarde, já no quarto de hospital e com melhores condições de vida, ainda se encontrava preso. Não tinha alternativa senão ficar no quarto, recebendo visitas esporádicas e pequenas amostras e objectos de um mundo exterior.
Pensava-se que Merrick era retardado pois não era capaz de falar coerentemente mas, na verdade, ele era inteligente e sensível, como se veio a descobrir mais tarde no quarto do hospital. Apesar disto, Merrick continuava a ser visto como uma aberração. Merrick seria para sempre um prisioneiro da sua condição física.
Saartjie, um caso mais complexo. Nunca nos é dada uma certeza de que Saartjie é paga pelos seus espectáculos. No entanto, mesmo que assim o fosse, não foi suficiente para ela sair do ciclo vicioso. Para além destas exibições, viu-se mais tarde obrigada a entrar no mundo da prostituição. Saartjie é então prisioneira na sua própria vida, prisioneira do álcool, onde procura refúgio de uma vida dura e de um passado que nunca é revelado. Serão os problemas de Saartjie a vida humilhante que leva ou terá algo a ver com o seu passado?

Temos presente em ambos os filmes, dois olhares diferentes, ou seja, a classe baixa e a classe alta. Nas classes mais baixas, demonstradas nos circos onde os personagens são exibidos, nota-se uma falta de personalidade, de benevolência. Não existe qualquer tipo de essência humana. Comportam-se como animais, cruéis e sem piedade. São apenas corpos que se riem dos personagens.
Nas classes mais altas (representadas no hospital, teatro e em casa de Treves em Elephant Man e em grandes festas em Paris em Vénus Noire), encontramos o fascínio, a curiosidade, uma ligeira consciência de respeito e o erotismo. Em Elephant Man, este “olhar” da sociedade é mais complexo, também devido à sua deformidade. A sociedade esconde o que realmente sente quando o vê através de uma “mascara” de educação e simpatia.
Ambos os personagens, apesar de rodeados de pessoas, encontram-se sozinhos e alienados. Encontram-se isolados da sociedade. Treves trata frequentemente Merrick como objecto de estudo e Saartjie (também ela objecto de estudo de cientistas), apesar da convivência com outras personagens, não se encontra psicologicamente presente nem demonstra qualquer tipo de interesse pelo que a rodeia. Merrick desejava fazer parte da sociedade normal enquanto que Saartjie aparenta querer fugir dela. Talvez se possa explicar com o facto de Saartjie fazer parte da sociedade normal quando se encontra fora do seu espaço de exibição, com a sua desilusão com a vida passada e presente. A sua aparência alienada dá, de certa forma, a impressão de que esta mulher sabe que está a ser escravizada e explorada mas tenta convencer-se do contrário.

Todos queriam que Saartjie fosse algo que ela não era na realidade: uma selvagem em palco porque chamava a atenção do público; uma princesa porque uma empregada doméstica não convinha aos média; uma aberração, porque era diferente dos Europeus. O facto de sabermos tão pouco de Saartjie tornam-na num símbolo, um símbolo de uma vítima de racismo e de maus tratos.
Os personagens tornam-se ícones de uma visão de prosperidade, onde as diferenças de cada um seriam aceites e inseridas na sociedade.

“Yes, but, sir, you saw the expression on their faces. They didn't hide their disgust. They don't care anything about John! They only want to impress their friends!” - Mothershead, The Elephant Man

Outra semelhança encontrada entre os dois filmes é a ligação nos campos da arte e entretenimento (Saartjie como “artista” de feira e Merrick com a sua exibição), da ciência (as sequencias longas na academia de ciência em Vénus Noire e no hospital em Elephant Man, a exibição perante uma audiência de cientistas), da imprensa, da justiça e da moral (decadência de Saartjie e a morte de Merrick, que desejava dormir como uma pessoa normal). Oferecem-nos uma ideologia um tanto racista e preconceituosa (por exemplo, posta pelos cientistas no caso de Saartjie e vista praticamente ao longo de todo o filme de Lynch) que permanecem ainda hoje no subconsciente humano.

“Nunca vi uma cabeça de um humano tão semelhante à de um macaco”

É também posta em causa a inferioridade mental dos personagens.

“Oh, he's an imbecile, probably from birth. Man's a complete idiot... Pray to God he's an idiot.” - Dr. Frederick Treves, The Elephant Man

Saartjie pouco fala durante o filme, nunca conseguimos perceber como ela realmente se sente mas a sua linguagem corporal deixa poucas duvidas acerca da sua posição em relação à vida que leva. Claramente essa vida não é o que lhe foi prometido quando a trouxeram para a Europa (um espectáculo onde ela apenas teria de cantar e dançar). Vemos Saartjie através dos olhos de uma plateia mas, de vez em quando, conseguimos ter um vislumbre da mente da mulher a quem o corpo pertence.
Sabemos que ela não concorda com a forma de como é tratada, chegando a desafiar o seu suposto sócio. Com isto, Kechiche tenta humanizá-la, tornando questionável o quão ela controlava a situação (embora saibamos que era praticamente uma escrava).
Saartjie mantém-se um mistério.

Outra semelhança encontrada é a amizade estabelecida com um outro personagem: Jeanne em Vénus Noire e Frederick Treves em Elephant Man. Apesar de haver interesses associados a esta aparente amizade (no caso de Jeanne, o lucro que tem às custas de Saartjie e, no caso de Treves, a descoberta e o estudo de Merrick), é questionável se seria ou não genuína.
Poderíamos refutar este ponto facilmente dizendo que, inicialmente, havia um interesse por parte de Jeanne e Treves para com Saartjie e Merrick nomeadamente, mas, com o constante convívio com estes personagens, acabaram por estabelecer uma amizade genuína. Na verdade são os únicos que realmente convivem diariamente com Saartjie e Merrick, acabando por ver que existe realmente um ser humano por detrás do corpo, considerado por muitos apenas um rendimento ou uma atracção.

Ambos os filmes representam maravilhosamente o lado bestial do ser humano, a curiosidade que não encontra limites mesmo que dependa da humilhação de outro ser humano. Apesar de encontrarmos muitas semelhanças entre os dois, eles são na realidade muito diferentes um do outro. São dois filmes que valem muito a pena ver, não só pelo conteúdo histórico-social da época Vitoriana mas também pela moral e conteúdo que podemos retirar deles.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

'The Artist', por Pedro Leitão

Take 1. Forçada a pose, pronta e a postos, sobrolho arregalado. Luzes, a câmara e a música, acção: arranca o travelling. O nosso protagonista, espião intrépido a mando das nações livres do ocidente, vai percorrendo entre braços e giros de valsa a sala cheia, ao encontro do inimigo que o espera, sentado numa mesa ao fundo, para o chá. Take 2. Incauto, desliza no braço errado, cai na armadilha: aquilo que o agarra pelos pulsos e o prende junto ao corpo, que desarma a pose, o sobrolho e a missão importantíssima é uma mulher – de vestido preto, fino, pousado sobre os ombros, e olhar luminoso. Tudo está perdido. Take 3. A câmara não avança mais. Corta. Descomposta a cena, o cenário sucumbe à sua artificialidade, desmancham-se os figurantes e tudo em seu redor. Mas os dois continuam, braços dados, olhos presos no espaço entre bocas, e o novo espião, a câmara, quieta e muito muda, regista o desenlace. O romance é interrompido com a consciência do cinema, de serem filme, e lá se vai a possibilidade de um beijo. (Que no filme nunca acontece; e talvez por isso mesmo).
Take 4 e restantes. A imagem tremida da película, já gasta das vezes que passou pelo projector e reproduziu, sempre, a potencialidade do desfecho ideal, mas que redundou nisto: ele, deitado numa cama de hospital, recupera de um rasgo de desespero e loucura que o deixou sem tecto, sem roupa e sem as memórias do passado glorioso. Todas as lembranças menos uma: a bobine que guarda os 4 takes falhados, do espião, da armadilha e daquela possibilidade magnífica. (Todas menos duas). E ela.
Ela está sentada junto à cama de hospital, espera. Sobreviveu à primeira das grandes revoluções de Hollywood, aceitou os seus termos porque nada a prendia ao passado (ao espião, sim, mas ele não era trabalho ou ambição, era um beijo em potência); e, assim, aceitou fazer parte de uma indústria que teve vergonha da memória, que tentou apagá-la e começar do zero. Em 1927, como depois em 63 (com Cleópatra, o crash fatal da Hollywood clássica) e, suspeito-o, agora neste início de século.
Porque a “máquina dos sonhos” é feita de duas partes: o espectáculo e a arte, substancialmente desintrincáveis, pela própria matéria que está na génese do cinema de Hollywood. Ora, se é obrigação da arte avançar pelas possibilidades que a memória e o assombro em parelha lhe permitem, já o espectáculo guia-se pelo fascínio do novo, das palmas no final, pelo exuberante mais que pelo belo. Naturalmente, por isto, com a novidade do som a beleza construída em vinte anos de cinema mudo teve de ser esquecida.
E em sessentas com a democratização da televisão, o próprio sistema de estúdios, incapaz de se reinventar após trinta anos de enclausuramento estético, fez por reforçar o exuberante dos filmes em milhões e milhões gastos em total desespero; e falhou redondamente. De 63 a 69 (ano de Easy Rider), Hollywood andou à deriva. Quando, por fim, o sistema acolheu os "rebeldes" na década de setenta, nunca mais quis saber da sua idade dourada, e a beleza do cinema clássico foi para a prateleira com a restante memorabilia
Agora, com a revolução pirata e o colapso do circuito de exibição, a indústria atravessa um novo período de crise. Esgotou todas as suas potencialidades criativas (que já em noventas eram escassas), intimou os seus artistas ao “conformismo ou nada”, e já não seduz as novas promessas do exterior, que sempre lhe cederam originalidade e talento a troco de quase coisa nenhuma.
Eis que chega de França o aviso: a memória persiste, apesar da vergonha; senão em Hollywood, pelo menos fora dela. Os mais ponderados perceberam isso. “O Artista” não é (só) um filme mudo feito em 2011. É um filme sobre um espião remetido ao esquecimento pelos altos desígnios da diplomacia internacional que, por já não ter lugar neste mundo, se deixa arrastar ao desespero pela revelação da sua inconsequência. E por isso a tragédia do mudo como cenário, na sua pose mais estilizada e caricatural, no contorno das personagens e do argumento, no floreado estilístico; nunca na mise-en-scène, por exemplo. Ou no romance. Esse, como o Mourinha (do Público) bem notou, cristaliza a pureza do período, e o seu principal legado: «a emoção precisa apenas de dois actores e uma câmara. (…) Não precisa de mais nada; o resto é fachada».
A esperança chega aos espiões esquecidos na forma de um braço delgado que promete a reconciliação entre o passado e o futuro. Ou, igual recado, por um filme francês sobre a memória do cinema americano. Hollywood que o agarre a tempo do happy ending.


«The Artist» de Michel Hazanavicius
com Jean Dujardin e Bérénice Bejo
França, 2011