segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Vale Abraão, por Ricardo Branco

Direção: Manoel de Oliveira
Guião: Agustina Bessa-Luís / Manoel de Oliveira
Elenco: Leonor Silveira, Cécile Sanz de Alban e Luís Miguel Cintra

Quando comecei a ver o Vale Abraão, pensei que este seria uma adaptação da Madame Bovary e não uma  recriação de uma outra Ema que fazia questão de afirmar que nada de Bovary possuía. Vale Abraão é intemporal: porque de facto não existe qualquer referencia temporal – oferecendo a toda aquela história uma conotação de mito, ou até: de conto de fadas.
Manoel de Oliveira manteve-se fiel à reinvenção de Agustina Bessa-Luís e isso nota-se nomeadamente na linguagem aristocrática com que a voz-off nos interpela. Há uma vontade notória também na seleção de cenas e até na longa duração do filme, por parte do realizador de se manter fiel dentro dos possíveis à obra homónima.
Tendo o Douro como personagem principal – as paisagens, a que se dá meticulosa atenção, são sumptuosas e tomam grande papel no enredo que temos perante nós. A fotografia é assim, de certa forma, um total deslumbre e a claridade do Vale oferece uma especial tonalidade à imagem de pureza e leveza.
Não poderia haver melhor Ema que Leonor Silveira – que durante cenas inteiras nos constata apenas com a sua beleza, enquanto a voz do narrador nos indicia para dentro da sua cabeça e nos transparece o que se passa com Ema de Paiva. Penso que esta Ema é muito mais enigmática que a Bovary, oferencedo-lhe uma tonalidade oculta que nos é transmitada pelo próprio Vale (daí, existir um constante diálogo da personagem com a terra), e essa opacidade seduz-nos a nós espetadores também como a todos aqueles homens que caiem a seus pés.
Ema de Paiva leu três vezes a Emma de Flaubert, as pessoas de elite com que Ema se dá chamam-lhe de a “Bovarinha” e uma das personagens, inclusive, divaga sobre afirmação célebre de Flaubert “Eu sou a Bovary” – existe um forte diálogo sempre entre as duas personagens, mas com a portuguesa recusando sempre qualquer semelhança com a primeira: já o sendo. “Eu não sou nada, sou um estado de alma em balouço” compara-se Ema de Paiva a uma rosa – e essa flor é demasiado importante nesta obra em diferentes simbolismos; tal como a pessoa que a tenha acompanhado a vida toda ser surda-muda: o que nos oferece a nós também um desafio de desconstrução tornando a visualização do filme completamente deliciosa.
Os espelhos, o dinheiro, os livros, o guarda-roupa, o laranjal – tudo é colocado em cada cena com uma demasiada importância, nada é por acaso na narrativa de Vale Abraão: os próprios diálogos enigmáticos são uma prova disso.
E quando Dossem afirma a um quarto de filme “Já não há amores líricos”, entendemos que esta história nunca vai ser sobre amores, mas sim sobre desamores – fazendo desta Ema de Paiva não uma Bovary, mas uma “Bovarinha” e bem portuguesa.