terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

The Elephant Man & Vénus Noire

Vénus Noire, de Abdellatif Kechiche, foca a história real de uma africana explorada como atracção de circo no séc. XIX.
Saartjie (Yahima Torres), a “Vénus Noire” do filme, é uma mulher que possui nádegas e seios grandes e os órgãos genitais com características especiais. Foi para Londres com o seu patrão, com a finalidade de se tornar uma artista. Acaba por ser explorada devido às suas diferenças e, de certa maneira, torna-se mesmo “atracção de circo”.
Para além de entretenimento, Saartjie torna-se também alvo de estudo de cientistas, que suspeitam que ela faz parte de uma rara tribo, a tribo Hotentote.
Como já sabemos, a intenção de Kechiche nos seus filmes nunca é criar uma obra bela ou agradável. O seu objectivo é mostrar a realidade, mesmo que essa realidade venha de forma fria e cruel. Este filme é então um retrato da humanidade e dos seus tabus sociais, que ainda hoje observamos, tais como o abuso, o racismo, a identidade cultural, voyeurismo, escravatura, etc.
O filme leva-nos, então, a questionar a complexidade da arte, bem como os seus limites.
Verificamos que Saartjie mantém a mesma expressão ao longo do filme, uma aparente calma, quase que “anestesiada”. Este comportamento justifica-se com a quantidade excessiva de álcool que consome. Um dos possíveis motivos que a levam a ingerir esta quantidade de álcool excessiva é a vida dura que leva, uma tentativa de esquecimento da humilhação dos seus espectáculos, uma espécie de fuga à realidade.
Os espectáculos de Saartjie tomam lugar primeiramente em Londres, onde o caso dela é levado a tribunal devido a escravatura e abuso. O caso acabou por ser encerrado devido ao seu testemunho, negando qualquer tipo de abuso e alegando fazer tudo de livre vontade. Trata-se de uma cena ambígua, o espectador não consegue perceber se Saartjie é realmente uma mulher livre ou não (apesar de ser obvio que esta mulher se encontra sujeita a abusos e exploração do sujeito que se diz de sócio, como verificamos em várias cenas do filme).
Depois de Londres, após ter sido vendida, Saartjie é levada para Paris, onde presta actuações semelhantes, na minha opinião ainda mais humilhantes e obcenas. No filme, Réaux (Olivier Gourmet), trata Saartjie como uma escrava sexual e incentiva o público a participar, apesar do seu transtorno evidente. Ao aperceber-se da situação, o publico espectador afastava-se, reprovando, assim, o espectáculo. Isto conduz a uma cena de violência física e psicológica de Réaux para com Saartjie e mais tarde ao seu abandono por parte deste, por falta de cooperação e audiência nos espectáculos.
Saartjie vê-se então obrigada a prostituir-se juntamente com Jeanne (Elina Löwensohn), acabando por morrer mais tarde com uma doença inflamatória, possivelmente sífilis.

The Elephant Man, realizado por David Lynch, é também baseado numa história verídica do séc. XIX, a história de Joseph Merrick (John Merrick no filme).
John Merrick (John Hurt), um homem severamente deformado, explorado e mantido por um empresário de moral duvidosa, expõe-se diante de multidões embasbacadas, que pagam para se entreterem diante da sua monstruosidade.
Frederick Treves (Anthony Hopkins), um cirurgião, fica indignado com Merrick e leva-o para o Hospital de Londres, onde passa a viver.
Merrick revela-se inteligente e gentil, um curioso em relação à sociedade. O seu único desejo é fazer parte dela. Animado por ter visitantes, John sentiu-se parte desta sociedade por momentos. Isto não era real pois continuava a ser apenas mais uma “atracção” dos ricos.

Existem várias semelhanças nos dois filmes e, apesar de se passarem ambos no séc. XIX, são filmes muito actuais. Talvez não encarássemos o indivíduo com a brutalidade demonstrada nos filmes mas a verdade é que, ainda hoje, qualquer um dos personagens seria “olhado de lado” pela sociedade.
Podemos dizer que ambos são escravos e livres ao mesmo tempo. Merrick viu-se obrigado a exibir-se perante uma multidão para sobreviver e Saartjie queria subir na vida com o mundo do espectáculo. Apesar de iludidos, foram de vontade própria, caindo assim numa vida dura e enganosa, numa vida violenta de um escravo. Merrick é vítima de uma violência maioritariamente física enquanto que, com Saartjie, é usada uma violência mais psicológica, apesar de vermos também episódios de violência física ao longo do filme.

Tratados como animais enjaulados:
Merrick, inicialmente cativo numa espécie de cave escura, obrigado a exibir-se perante uma multidão para sobreviver. Mais tarde, já no quarto de hospital e com melhores condições de vida, ainda se encontrava preso. Não tinha alternativa senão ficar no quarto, recebendo visitas esporádicas e pequenas amostras e objectos de um mundo exterior.
Pensava-se que Merrick era retardado pois não era capaz de falar coerentemente mas, na verdade, ele era inteligente e sensível, como se veio a descobrir mais tarde no quarto do hospital. Apesar disto, Merrick continuava a ser visto como uma aberração. Merrick seria para sempre um prisioneiro da sua condição física.
Saartjie, um caso mais complexo. Nunca nos é dada uma certeza de que Saartjie é paga pelos seus espectáculos. No entanto, mesmo que assim o fosse, não foi suficiente para ela sair do ciclo vicioso. Para além destas exibições, viu-se mais tarde obrigada a entrar no mundo da prostituição. Saartjie é então prisioneira na sua própria vida, prisioneira do álcool, onde procura refúgio de uma vida dura e de um passado que nunca é revelado. Serão os problemas de Saartjie a vida humilhante que leva ou terá algo a ver com o seu passado?

Temos presente em ambos os filmes, dois olhares diferentes, ou seja, a classe baixa e a classe alta. Nas classes mais baixas, demonstradas nos circos onde os personagens são exibidos, nota-se uma falta de personalidade, de benevolência. Não existe qualquer tipo de essência humana. Comportam-se como animais, cruéis e sem piedade. São apenas corpos que se riem dos personagens.
Nas classes mais altas (representadas no hospital, teatro e em casa de Treves em Elephant Man e em grandes festas em Paris em Vénus Noire), encontramos o fascínio, a curiosidade, uma ligeira consciência de respeito e o erotismo. Em Elephant Man, este “olhar” da sociedade é mais complexo, também devido à sua deformidade. A sociedade esconde o que realmente sente quando o vê através de uma “mascara” de educação e simpatia.
Ambos os personagens, apesar de rodeados de pessoas, encontram-se sozinhos e alienados. Encontram-se isolados da sociedade. Treves trata frequentemente Merrick como objecto de estudo e Saartjie (também ela objecto de estudo de cientistas), apesar da convivência com outras personagens, não se encontra psicologicamente presente nem demonstra qualquer tipo de interesse pelo que a rodeia. Merrick desejava fazer parte da sociedade normal enquanto que Saartjie aparenta querer fugir dela. Talvez se possa explicar com o facto de Saartjie fazer parte da sociedade normal quando se encontra fora do seu espaço de exibição, com a sua desilusão com a vida passada e presente. A sua aparência alienada dá, de certa forma, a impressão de que esta mulher sabe que está a ser escravizada e explorada mas tenta convencer-se do contrário.

Todos queriam que Saartjie fosse algo que ela não era na realidade: uma selvagem em palco porque chamava a atenção do público; uma princesa porque uma empregada doméstica não convinha aos média; uma aberração, porque era diferente dos Europeus. O facto de sabermos tão pouco de Saartjie tornam-na num símbolo, um símbolo de uma vítima de racismo e de maus tratos.
Os personagens tornam-se ícones de uma visão de prosperidade, onde as diferenças de cada um seriam aceites e inseridas na sociedade.

“Yes, but, sir, you saw the expression on their faces. They didn't hide their disgust. They don't care anything about John! They only want to impress their friends!” - Mothershead, The Elephant Man

Outra semelhança encontrada entre os dois filmes é a ligação nos campos da arte e entretenimento (Saartjie como “artista” de feira e Merrick com a sua exibição), da ciência (as sequencias longas na academia de ciência em Vénus Noire e no hospital em Elephant Man, a exibição perante uma audiência de cientistas), da imprensa, da justiça e da moral (decadência de Saartjie e a morte de Merrick, que desejava dormir como uma pessoa normal). Oferecem-nos uma ideologia um tanto racista e preconceituosa (por exemplo, posta pelos cientistas no caso de Saartjie e vista praticamente ao longo de todo o filme de Lynch) que permanecem ainda hoje no subconsciente humano.

“Nunca vi uma cabeça de um humano tão semelhante à de um macaco”

É também posta em causa a inferioridade mental dos personagens.

“Oh, he's an imbecile, probably from birth. Man's a complete idiot... Pray to God he's an idiot.” - Dr. Frederick Treves, The Elephant Man

Saartjie pouco fala durante o filme, nunca conseguimos perceber como ela realmente se sente mas a sua linguagem corporal deixa poucas duvidas acerca da sua posição em relação à vida que leva. Claramente essa vida não é o que lhe foi prometido quando a trouxeram para a Europa (um espectáculo onde ela apenas teria de cantar e dançar). Vemos Saartjie através dos olhos de uma plateia mas, de vez em quando, conseguimos ter um vislumbre da mente da mulher a quem o corpo pertence.
Sabemos que ela não concorda com a forma de como é tratada, chegando a desafiar o seu suposto sócio. Com isto, Kechiche tenta humanizá-la, tornando questionável o quão ela controlava a situação (embora saibamos que era praticamente uma escrava).
Saartjie mantém-se um mistério.

Outra semelhança encontrada é a amizade estabelecida com um outro personagem: Jeanne em Vénus Noire e Frederick Treves em Elephant Man. Apesar de haver interesses associados a esta aparente amizade (no caso de Jeanne, o lucro que tem às custas de Saartjie e, no caso de Treves, a descoberta e o estudo de Merrick), é questionável se seria ou não genuína.
Poderíamos refutar este ponto facilmente dizendo que, inicialmente, havia um interesse por parte de Jeanne e Treves para com Saartjie e Merrick nomeadamente, mas, com o constante convívio com estes personagens, acabaram por estabelecer uma amizade genuína. Na verdade são os únicos que realmente convivem diariamente com Saartjie e Merrick, acabando por ver que existe realmente um ser humano por detrás do corpo, considerado por muitos apenas um rendimento ou uma atracção.

Ambos os filmes representam maravilhosamente o lado bestial do ser humano, a curiosidade que não encontra limites mesmo que dependa da humilhação de outro ser humano. Apesar de encontrarmos muitas semelhanças entre os dois, eles são na realidade muito diferentes um do outro. São dois filmes que valem muito a pena ver, não só pelo conteúdo histórico-social da época Vitoriana mas também pela moral e conteúdo que podemos retirar deles.

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