domingo, 5 de fevereiro de 2012

'The Artist', por Pedro Leitão

Take 1. Forçada a pose, pronta e a postos, sobrolho arregalado. Luzes, a câmara e a música, acção: arranca o travelling. O nosso protagonista, espião intrépido a mando das nações livres do ocidente, vai percorrendo entre braços e giros de valsa a sala cheia, ao encontro do inimigo que o espera, sentado numa mesa ao fundo, para o chá. Take 2. Incauto, desliza no braço errado, cai na armadilha: aquilo que o agarra pelos pulsos e o prende junto ao corpo, que desarma a pose, o sobrolho e a missão importantíssima é uma mulher – de vestido preto, fino, pousado sobre os ombros, e olhar luminoso. Tudo está perdido. Take 3. A câmara não avança mais. Corta. Descomposta a cena, o cenário sucumbe à sua artificialidade, desmancham-se os figurantes e tudo em seu redor. Mas os dois continuam, braços dados, olhos presos no espaço entre bocas, e o novo espião, a câmara, quieta e muito muda, regista o desenlace. O romance é interrompido com a consciência do cinema, de serem filme, e lá se vai a possibilidade de um beijo. (Que no filme nunca acontece; e talvez por isso mesmo).
Take 4 e restantes. A imagem tremida da película, já gasta das vezes que passou pelo projector e reproduziu, sempre, a potencialidade do desfecho ideal, mas que redundou nisto: ele, deitado numa cama de hospital, recupera de um rasgo de desespero e loucura que o deixou sem tecto, sem roupa e sem as memórias do passado glorioso. Todas as lembranças menos uma: a bobine que guarda os 4 takes falhados, do espião, da armadilha e daquela possibilidade magnífica. (Todas menos duas). E ela.
Ela está sentada junto à cama de hospital, espera. Sobreviveu à primeira das grandes revoluções de Hollywood, aceitou os seus termos porque nada a prendia ao passado (ao espião, sim, mas ele não era trabalho ou ambição, era um beijo em potência); e, assim, aceitou fazer parte de uma indústria que teve vergonha da memória, que tentou apagá-la e começar do zero. Em 1927, como depois em 63 (com Cleópatra, o crash fatal da Hollywood clássica) e, suspeito-o, agora neste início de século.
Porque a “máquina dos sonhos” é feita de duas partes: o espectáculo e a arte, substancialmente desintrincáveis, pela própria matéria que está na génese do cinema de Hollywood. Ora, se é obrigação da arte avançar pelas possibilidades que a memória e o assombro em parelha lhe permitem, já o espectáculo guia-se pelo fascínio do novo, das palmas no final, pelo exuberante mais que pelo belo. Naturalmente, por isto, com a novidade do som a beleza construída em vinte anos de cinema mudo teve de ser esquecida.
E em sessentas com a democratização da televisão, o próprio sistema de estúdios, incapaz de se reinventar após trinta anos de enclausuramento estético, fez por reforçar o exuberante dos filmes em milhões e milhões gastos em total desespero; e falhou redondamente. De 63 a 69 (ano de Easy Rider), Hollywood andou à deriva. Quando, por fim, o sistema acolheu os "rebeldes" na década de setenta, nunca mais quis saber da sua idade dourada, e a beleza do cinema clássico foi para a prateleira com a restante memorabilia
Agora, com a revolução pirata e o colapso do circuito de exibição, a indústria atravessa um novo período de crise. Esgotou todas as suas potencialidades criativas (que já em noventas eram escassas), intimou os seus artistas ao “conformismo ou nada”, e já não seduz as novas promessas do exterior, que sempre lhe cederam originalidade e talento a troco de quase coisa nenhuma.
Eis que chega de França o aviso: a memória persiste, apesar da vergonha; senão em Hollywood, pelo menos fora dela. Os mais ponderados perceberam isso. “O Artista” não é (só) um filme mudo feito em 2011. É um filme sobre um espião remetido ao esquecimento pelos altos desígnios da diplomacia internacional que, por já não ter lugar neste mundo, se deixa arrastar ao desespero pela revelação da sua inconsequência. E por isso a tragédia do mudo como cenário, na sua pose mais estilizada e caricatural, no contorno das personagens e do argumento, no floreado estilístico; nunca na mise-en-scène, por exemplo. Ou no romance. Esse, como o Mourinha (do Público) bem notou, cristaliza a pureza do período, e o seu principal legado: «a emoção precisa apenas de dois actores e uma câmara. (…) Não precisa de mais nada; o resto é fachada».
A esperança chega aos espiões esquecidos na forma de um braço delgado que promete a reconciliação entre o passado e o futuro. Ou, igual recado, por um filme francês sobre a memória do cinema americano. Hollywood que o agarre a tempo do happy ending.


«The Artist» de Michel Hazanavicius
com Jean Dujardin e Bérénice Bejo
França, 2011

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